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Goiânia - Brasil
      

 


 

Omael, o anjo da guarda

 

 

 

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Omael, o anjo da guarda

 

O dia estava naquele momento especial em que as nuvens que bailam no céu parecem querer brincar com a nossa mente criando imagens fantásticas. Era belo o cenário aéreo. O vento que envolvia a minha pele agia suavemente refrescando e deixando uma sensação de prazer, difícil de explicar. Era bom e isso é o que valia. Sentei-me sob a árvore de galhos frondosos e fiquei ali durante vários minutos com os olhos no céu, mas sem ver nada. Fazia parte daquele cenário e não queria desmanchá-lo com a realidade que conhecia. Precisava mesmo daqueles minutos de paz. A tarde corria tranquila.

Depois de algum tempo, parecia que eu podia sentir cada pedaço daquele lugar como se fizesse parte dele. Os meus olhos descansados viam longe, tão longe, que até vi o pulo daquele grilo, saltando para outra folha. Ouvi o barulho das suas patas tocarem na folha verde e macia, e ainda pude ver os respingos de uma gota d’água que voou pelos ares pelo impacto do pouso. Ele afundou os pés dentro da folha e sacudiu a cabeça, agitado. Esse fato, de ver essa cena que estava desenrolando a quase quinze metros de onde estava, mexeu comigo. --- Como é que posso ver a essa distância? – me perguntei, atônito. De repente, parecia que eu havia adquirido super poderes como dos heróis em quadrinhos.

--- Isso não está certo! – falei, comigo, assustado com tantos detalhes da minha visão. --- Será que vi mesmo? – perguntei ao meu cérebro que iniciava todas as engrenagens de pesquisas para definir se vi ou não vi o grilo saltador! O fato é que tudo aconteceu em câmara lenta, quadro a quadro, e com a nitidez de milhões de cores. Impossível de não ter notado, mesmo àquela distância, mas isso só para os super heróis e eu não era nem ajudante de herói.

--- Vi mesmo! - falei, convicto com meus botões.

--- Viu sim – afirmou uma voz aos meus ouvidos.

O meu primeiro impulso foi o de levantar o mais rápido possível e correr. Sabia que estava sozinho naquele lugar, como é que de repente aparece uma voz falando comigo? Aquilo só podia ser algum fantasma! Olhei ao redor para ver se descobria quem havia falado comigo, mas não vi nada. Estava sozinho e disso tinha certeza.

--- Quem está aí – pergunto, enquanto reviro com os olhos os possíveis esconderijos. Não havia ninguém à vista. --- Quem é? – volto a perguntar.

--- Olhe à sua direita – volta a falar a mesma voz. --- Veja! Estou bem aqui, pertinho de você!

Virei a cabeça para o lado indicado, com os cabelos da nuca arrepiando, tentando ver a imagem de alguma pessoa, mas nada via. Só havia a árvore e sob ela, a grama limpa e verdinha. Não havia onde uma pessoa pudesse se esconder.

--- Não estou vendo ninguém – falei, ainda olhando tudo com mais atenção.

--- Pena, pensei que depois de estar em tão perfeita harmonia com o Universo você fosse capaz de me ver – fala novamente o misterioso parceiro, com tristeza na voz.

--- Mas, mas co...como é? – perguntei, aflito. O medo do invisível começava a tomar conta do meu corpo. --- Não est... estou vendo você! – concluí.

--- Fique calmo. Não deixe o medo tomar conta de você – fala, a voz misteriosa, procurando incutir em mim uma confiança que havia desaparecido. --- O fato de ouvir a minha voz já é uma vitória.

Olhei novamente na direção de onde vinha aquela voz, e por alguns instantes tive a nítida impressão de que havia alguém sentado na grama, virado na minha direção. Ele tinha cabelos longos, meio louros, ombros largos e vestia uma espécie de bata branca. A imagem tremeluziu por alguns segundos, como acontece nas imagens da TV quando tenta melhorar o brilho e estabilizou. Ele sorriu.

--- Olá Valdir, como vai? – perguntou, descruzando os braços. Aquele movimento, o de mover os braços, pareceu-me desprender pingos de luz por entre eles.

--- Então estou tendo um contato imediato? – pergunto, mesmo sabendo que não era nada daquilo. Aliás, de onde é que eu havia tirado aquela ideia de extraterrestres.

--- Não. Não está – disse ele com tranquilidade enquanto sorria da minha insensatez. --- Não sou um extraterrestre, e você sabe disso!

--- É, tem razão – confirmei cabisbaixo. --- É que mesmo querendo não consigo imaginar que você seja um... um..

--- Um...

--- Um anjo – completei, enquanto me sentava, agora de frente para ele.

--- Você tem razão. Ultimamente estamos bem desacreditados. Quase não se fala em nossos nomes, nossos atos, ou mesmo de pessoas que conseguem nos ver. Estamos sendo apagados das memórias dos homens – conclui, meio triste.

Fiquei em silêncio por algum tempo, respeitando o fato dele, ao que parecia, ter desligado de mim e ficasse olhando para o céu. Tentei tomar posse de tudo aquilo que estava acontecendo. Tentei aceitar o fato de que um anjo estava bem ali, na minha frente, e disposto a conversar comigo. --- Será que sou alguma espécie de humano especial? Alguém que merece ter contato com anjos? – pergunto ao meu cérebro misturado.

--- Agora estou vendo você – falei, para tirá-lo daquele transe. --- Essa é a sua forma real?

--- Por que não seria? Não somos feitos à imagem do Senhor? – respondeu o anjo, levantando-se e dando alguns passos em minha direção. --- Desde a criação do mundo somos assim, iguais a vocês. A diferença é que não morremos. Vivemos eternamente, mas isso não é bom.

--- Não é bom? – pergunto curioso, afinal nunca havia falado com um anjo antes. --- Por que não é bom ser anjo?

--- O tempo, Valdir. O tempo é o nosso maior inimigo. Cedo ou tarde ele vence. Chega uma hora em que nada tem o mesmo valor. Tudo fica repetido, nada de novo acontece e quando acontece, nem sempre é coisa boa ou que valha a pena viver! Principalmente em se tratando de vocês, os escolhidos de Deus.

--- Estou sentindo uma mágoa escondida em sua voz, ou estou enganado? Não pensei que anjos tivessem esse tipo de sentimento. Afinal, isso de ter ciúmes, inveja, de acordo com a história, é coisa de humano.

--- Pronto! – respondeu, o anjo, elevando a voz. --- Quer dizer que encontrei a minha consciência? – pergunta, nervoso. --- Deixa disso! E também, não apareci para você para ficar discutindo o meu destino...

--- Calma, cara! – falei, tentando evitar o pior. Não gostaria de travar uma luta com um ser milenar. --- Falei, por falar! Não sou de brigar!

--- Eu sei que não é brigão, afinal te acompanho há sessenta anos! – falou, com um sorriso no rosto. --- Conheço você muito bem! Você gosta de agitar, mas evita brigar. Isso é bom, pois nem sempre consigo segurar a sua barra!

--- Não entendi! – disse, olhando para ele. --- Espera! Quer dizer que você é o meu anjo da guarda?

--- O próprio! – fala, o anjo, sentando-se ao meu lado. --- Omael a seu dispor! – fala. Ao mesmo tempo em que curva o corpo na minha direção.

--- Omael. Bonito seu nome. Diferente! – falei, tentando ser natural, como se todos os dias conhecesse um anjo diferente. --- Não conheço ninguém chamado assim.

--- Nossos nomes são diferentes. Caliel, Mehabel...Ezequiel. O Criador tinha uma queda por nomes terminados em El – fala, meio sarcástico.

--- Mas eu realmente gostei – falei, tentando esticar o assunto. --- Existe mesmo um Caliel, um Mehabel?

--- Claro! Estive com eles há pouco mais de cem anos. Falamos um bom tempo, mas depois cada um seguiu seu caminho. Nem sempre conseguimos reunir nossos pupilos.

---Ah, quase esqueci que são Anjos-da-Guarda! Só podem ficar ao lado daquele que está sendo protegido.

--- Hoje, por causa de jeito moderno de viver, até que não somos muito necessários. Não conseguimos mudá-los em nada mesmo!

Fiquei olhando para ele. Tinha a impressão de que ele estava muito amargurado. Queria falar com alguém. Por isso escolheu aparecer para mim depois de tantos anos. Acho que ele precisava falar dos seus sentimentos, colocar para fora as mágoas que só quem sente é que sabe. Fui o escolhido.

De perto ele era realmente diferente de nós os humanos. A pele era lisa, sem nenhuma espécie de pelo ou mancha. Os cabelos batiam abaixo dos ombros e era mesclado de louro com castanho. Havia um cheiro que emanava dele que lembrava ervas do campo, ervas amassadas com aroma suave. A bata, nunca havia visto um tecido como aquele. Era grosso, com fios brilhantes que esmaeciam ao se mover. Senti-me seguro, ali sentado ao lado daquela criatura que se intitulava anjo e que eu, por mais cético que fosse, não poderia deixar de reconhecer. Havia poder ao redor dele.

Notei, naquela hora, que pássaros vinham de todos os lugares em direção a nossa árvore. Pulavam de galho para o outro soltando sons melodiosos, borboletas voavam em grupo, pousando aqui e ali, colorindo o lugar. Até o grilo pulador, de repente, saltou em meu braço e ficou ali, quieto. Sabia que não lhe faria mal.

--- Antes de falar com você, estava ali observando seus movimentos. Por um momento lembrei-me de quando você era pequeno – fala, com ar sonhador – você gostava de conversar comigo. Lembra?

--- Não. Não me lembro – falei, vasculhando minha memória á procura de tais momentos. Não consegui encontrá-los, mas sabia que eles existiram.

--- Você era muito levado. Fazia coisas que eu, mesmo sabendo que faria algo diferente, sempre era pego de surpresa – riu, de alguma lembrança. --- Um dia, quando você tinha pouco mais de cinco anos, você conseguiu urinar nas cabaças de água, que estavam enfileiradas sob uma árvore para ficarem bem frias. Era ali que os peões de seu pai iam matar a sede, enquanto capinavam o arrozal. Encontraram todas elas com urina fresquinha! – ri, recordando o momento. Depois ele levantou-se e caminhou até um galho da árvore e ficou olhando para as folhas, repletas de lagartas enfileiradas nos olhando. Ele passou os dedos em cima delas e sorriu a ver ao que elas se enroscaram uma na outra para aproveitar o calor transmitido. --- Tive usar toda a minha energia de paz, para evitar que seu pai o dividisse em dois! Você bem que merecia!– riu, feliz. --- Naquele dia somente o seu avô, o Xará, esteve do seu lado. Todos queiram sua pele! Você estava sozinho nessa trama, só o seu avô e eu, para defendê-lo. Como ele era idoso, eu tinha o poder de falar com ele. Pedi a ele para ajudar.

--- Falava com meu avô?

--- Sim. Falava. Os anjos têm o poder de falar com as crianças, sem nenhuma barreira. Fazemos parte do mundo imaginário delas. Mas depois, depois quando começam a viver o dia-a-dia, se esquecem de nós. Só retornam a lembrar daqueles momentos na velhice. Aí, pensam em nós e podemos falar com eles novamente.

--- Como era o meu avô? Gostava dele, mas ele morreu quando eu ainda era muito jovem e não sabia amar os mais velhos.

--- Ele não dormia bem à noite e ficava rolando na cama esfregando as pernas. Às vezes eu fazia companhia para ele. Ele pedia a minha ajuda para massagear os músculos que doíam muito. Queria ir embora. Estava cansado da vida, mas não podia interferir. Não podemos mudar o destino de ninguém. Temos a missão de salvá-los em casos extremos. É claro que dizemos coisas aos ouvidos de vocês, coisas sensatas para ajudá-los a aprender viver. Mas é só. Acompanhamos vocês a vida toda, para poder falar a seu favor no dia do seu julgamento. Mas não interferimos na vida de ninguém! Na sua então, não posso! Desde o dia que você falou para que eu sumisse que deixei de aparecer para você.

--- Como? – perguntei, assustado. --- Mandei você embora?

--- É. Mandou. Foi depois daquele dia que você queria jogar um monte de minhocas dentro da roupa da sua tia Carola, aquela velhinha tão simpática.

---É mesmo?

--- Foi. Foi assim, mesmo. Eu mostrei as minhocas dentro do seu bolso e as que estavam na sua mão à sua mãe – riu, do momento. --- Na verdade, não mostrei. Ela não podia me ver, por isso gritei o nome dela tão alto junto ao ouvido dela, que ela olhou para o seu lado rapidamente e viu o que ia fazer – olhou para mim e piscou o olho. --- Ela pulou rápida em sua mão e tomou tudo e ainda deu-lhe uns bons tapas! Bem merecidos. Você, é claro, viu tudo e me xingou. Mandou que eu fosse embora.

--- Puxa! Não me lembro! – falei, pensativo. Embora vagamente em minha memória algumas daquelas imagens vinha e voltavam rapidamente. Senti até saudades das palmadas de minha mãe.

Depois desse momento ficamos os dois ali, parados sem falar nada. Eu não sabia o que perguntar ou dizer a ele. E ele, parece, estava meio perdido.

--- Parece que você está triste, posso ajudar em alguma coisa? – perguntei, tentando imaginar uma maneira de continuar a conversa.

--- É. Você tem razão. Estou mesmo um pouco triste. Não consigo encontrar prazer em estar aqui na Terra, fazendo o que faço. Há muito tempo deixei de admirar muita coisa. Só momentos como esse que recordei de você, trás alegria. O mundo mudou, e mudou para pior...

--- Pensei que fosse somente eu e uns poucos céticos do mundo que sentisse isso – falei, também contagiado pelo momento. --- Como será daqui a dez, vinte, trinta... sei lá quantos anos, a vida deles? Nada do que os meus pais, os meus avós ou eu mesmo, tenha imaginado que fosse ser.

--- As crianças de hoje não conseguem nos ver. Poucos deles têm esse poder. A maioria, ligadas às suas máquinas, não sabe que existimos! Só conseguem ver os personagens de seus jogos, e isso nos deixa à margem da vida deles.

--- Não havia pensado nisso – falo, visualizando crianças com computadores, vídeos games, e jogos infernais em toda parte. --- Agora que falou, lembro de ter conversando com algumas crianças da família, nas férias passadas, nenhuma delas sabia o que era brincar de cobra-cega, pique-esconde, amarelinha.... só jogos violentos.

--- O que mais machuca é que estamos ali, do lado delas, sem poder fazer nada para impedir. Não conseguimos, se não nos vêem. Os valores que defendem os pais deles são completamente diferentes dos que eram os dos seus pais. Ali havia humildade.

--- Então, já que sou considerado “velho” pelos padrões atuais, você poderá conversar comigo! Não é legal?

--- Quantas vezes você acha que conseguirá me ver? Melhor, quantas vezes você me ouvirá?

--- Não sei...

--- O velho tem muito da sabedoria da vida, mas têm ideias próprias. Não aceitam ajuda!

Depois disso ele ficou em silêncio e eu não tive coragem ou argumentos para contestar as palavras dele. Pela primeira vez em minha vida soube reconhecer que era teimoso e que poucas vezes ouvia as palavras dos que me rodeiam. Fiquei imaginando quando foi que perdi o caminho, perdi o contato com a verdadeira paz interior, como essa que estava sentindo agora. A minha vida, sempre agitada, aliás, agitada por mim mesmo, nunca sobrava espaço para pensar no meu ser espiritual, o Valdir alma, Valdir Ser feito por Deus. Somente agora me dava conta que foi preciso que as barreiras que cercavam o meu ser fossem quebradas por um fato inusitado, o aparecimento de um anjo, para que pudesse perceber que a minha vida, apesar de ter sido consumida muito mais da metade, estar depois dos sessenta, ainda poderia haver surpresas que realmente compensasse viver. Olhei para o anjo e ele sorria.

--- A gente se vê por ai! – disse ele, começando a desaparecer. --- Fico feliz que tenha aprendido a lição. Acho que ainda poderemos nos ver novamente.

Depois dessas palavras ele foi desaparecendo lentamente e eu fiquei ali, olhando o vazio do lugar onde ele estava. Dentro de mim uma certeza havia tomado corpo, criado esperança.

O grilo, que durante todo esse tempo havia ficado pendurado à manga da minha camisa, como que confirmando o que eu disse, soltou um som estridente, bem alto, olhou no meu rosto e pulou novamente para a árvore. Acho vi uma espécie de sorriso, na cabeça antenada dele, se é que posso chamar de sorriso aquele olhar silencioso.


Valdir R. Silva

26/01/2010 17:39
18/11/2010 04:01

 


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