A
CAIXA PRETA
O sol ainda brilhava no horizonte e mesmo àquela
hora, no final do dia, ainda era preciso usar
a roupa feita de fio de seda sintética
e fibras de aço trançado para
se proteger das radiações. A roupa,
apesar de não ter nenhum peso aparente
e não fazer volume sobre o corpo, incomodava.
Era tão fina que dava a sensação
de estar nu. Zília não gostava
de deixar suas sensações à
mostra. Ela caminhava sob aquele sol com passos
bem estudados, observando o terreno por onde
pisava com cuidado para evitar alguma surpresa.
Mas, no final, para ela, era só mais
um dia de trabalho fora da abóbada protetora
da cidade.
Estava
chegando ao local onde foi relatado um estranho
achado: Uma caixa preta. A caixa, feita de um
material que os técnicos não puderem
definir, pois não tinha autorização
para tocar os materiais achados nas escavações,
aparentemente, de acordo com os relatos, era
feita de metal. Algum tipo de metal que não
conseguiram identificar com um simples olhar.
Era só o que constava do relatório
entregue na CCPA. A caixa ainda estava semi-enterrada
numa parte dos escombros da antiga cidade.
Zília
detestava ter que sair da proteção
que a abóbada transparente feita de raios
treslaçados a laser, que estendia sobre
a cidade, que a protegia dos raios nocivos do
sol. Detestava ainda mais ter que vestir aquela roupa, mas tinha que cumprir a sua obrigação.
Ela era a responsável pelo setor onde
foi encontrada a tal caixa, portanto, deveria
dar um parecer sobre o achado e levá-lo
aos superiores da CCPA. A Central de Controle
Permanente Ambiental, não gostava desses
achados e ela muito menos. Esse tipo de achado
sempre causava problemas para a comunidade calma
e pacata da cidade do Amanhecer, uma das poucas
sobreviventes da grande catástrofe do
ano 2035. Havia passado mais de um século
desde então, mas a vida fora da abóbada
protetora ainda era impossível de existir.
Aquela temperatura de mais de 80 graus centígrados
e tempestades violentas, ocorridas quase todos
os dias, tornava essa pretensão do homem
em voltar a viver ao ar livre, longe da proteção
transparente em forma de prisão, em um sonho
impossível de se realizar.
Zília,
dona de um rosto perfeito, enfeitados por dois
olhos azuis violetados, tinha um corpo
estonteante, feito nos melhores laboratórios
da comunidade. Era uma mulher que homem algum esqueceria depois de tê-la visto uma única vez. Não era do tipo de pessoa que gosta de festas, reuniões ou passeios. Preferia ficar sozinha com seus pensamentos. Detestava gente. O que ela mais gostava era de andar nua em seu apartamento. Era ali que ficava quase
que em tempo integral, uma vez que a maior
parte do seu tempo vivia isolada em seu iglu térmico.
Trabalhava, às vezes, semanas fechada
na segurança dos seus domínios,
sem subir a superfície da cidade. de
onde só saía para cumprir missões
que lhe eram determinadas. Naquelas ocasiões,
mesmo sabendo que a roupa a protegia totalmente,
sentia-se como um pequeno graveto flutuando
no meio de uma tormenta. Não conseguia
entender como que aquela roupa, aparentemente
fina e sem muita consistência, pois podia-se
amassá-la entre os dedos, a mantinha
presa ao chão, sem nenhum esforço
aparente, permitindo que andasse com segurança
mesmo que os ventos soprassem, como agora, a
mais de 150 km por hora. Ela não sentia
nada dessa violência do clima do planeta.
Era como caminhar pelo seu amplo apartamento
a 110 metros sob a superfície da cidade.
--- A caixa está logo
ali, debaixo daquela árvore calcinada
e petrificada - diz o homem, assim que ela chegou
ao seulado. --- Aqui era uma escola da periferia
da antiga cidade. Tudo está do mesmo
jeito, desde o dia do juízo - completa,
o homem, ao mesmo tempo em que vira as costas
para sair. Havia completado o seu serviço
e estava maluco de vontade para sair dali, do
mesmo jeito que Zília.
Ela se aproxima do objeto
cautelosamente, e o observa atentamente. Era
uma espécie de caixa, feita realmente
de algum tipo de metal. A cor preta era por
causa da alta temperatura da fusão nuclear.
A caixa não mostrava nenhum tipo de fechadura
ou alguma forma de ser aberta. Aparentemente
era um objeto sólido. Ela retira da bolsa
que trazia a tiracolo o radiofônico de
ultra freqüência e dirigiu o foco
da pistola fasers na direção do
objeto. Não iria tocá-lo enquanto
não tivesse uma radiografia espectral
do seu interior. Era arriscado demais e muitos
antes dela havia perdido a vida por serem muito
rápidos em querer voltar para a abóbada
protetora. Alguns dos apetrechos encontrados
explodiam ao simples toque.
O aparelho zumbiu por alguns segundos, ajustando
a freqüência gradativamente para
evitar disparar algum eventual dispositivo,
e aos poucos foi mostrando o seu interior. Primeiro
apareceu uma imagem meio difusa, em preto e
branco, mas logo em seguida, tudo foi colorido
com uma nitidez espantosa. Havia no interior
da caixa, dispostos lado a lado, alguns objetos
pequenos na forma de antigas canetas ou lapis,
como eram conhecidos os instrumentos de escrita
usados pelo homem antigamente, muito diferente
dos dias de hoje, quando basta acionar um multivisor,
que ele escreve tudo que precisar, sem erros
e de forma agradável. Mas aqueles objetos
sempre foram admirados por Zília. Ela
havia tocado em alguns deles, tempos atrás.
Era gostoso sentir os dedos envolverem a peça
feita de madeira. Ela, por alguns instantes,
se deixa levar pelos devaneios da mente e quase
esquece onde está e o que está
fazendo. Fica imaginando como seriam as árvores
que produziram aquele material e como deveria
ser gostoso andar no meio delas, como mostravam
as fotos dos livros antigos.
Ao
lado do feixe das canetas e lápis, havia
um boneco, vestido com uma roupa vermelha. Era
a imagem de um velhinho, de barbas brancas e
longas, com um sorriso no rosto e a boca semi-aberta
como estivesse falando alguma coisa. Zília
vira o foco da pistola para ao lado, onde havia
uma folha de papel escrita. A letra era meio
tremida, mostrando que quem a escreveu não
tinha muita prática.
" Querido
Papai Noel,
Esse
ano fui uma boa menina, acordei cedo, fui na
escola, ajudei a mamãe na casa e a professora
não brigou comigo. Sei que mereço
um presente por isso, mas não quero nada
para mim. Quero que o senhor guarde essa caixa,
com todo o meu carinho, para alguém que
precise do nosso amor, meu e do senhor, para
ser feliz. Que ela acredite que Papai do Céu
nunca se esquece de nós e que o dia de
amanhã vai ser muito melhor que o de
hoje. Guardo para ela minha coleção
de canetas, meus lápis preferidos, e
meus desenhos. Fiz até um retrato meu
para ela.
Um
beijo da Ana Terra"
As
lágrimas escorrem no rosto de Zília
enquanto ela levanta o corpo, com dificuldade
para esconder o rosto e diz para os homens que
aguardam as suas ordens:
--- Cubram essa caixa
com terra novamente! - fala, enquanto fica fora
do alcance das máquinas. --- Ela contém
restos da civilização antiga que
nada nos acrescentará - completa, tentando
manter a voz firme.
As
máquinas em poucos segundos cobrem toda
a área com terra limpa e reciclada, para
no futuro tentarem recuperar a terra da área,
no dia em que a natureza se acalmar e as condições
de sobreviver voltem a reinar. Zilia observa
os homens entrarem em seus veículos,
alheios ao acontecimento e desaparecerem rumo
a cidade. Ela ainda fica por alguns minutos
olhando por toda a área, sentindo uma
dor muito grande dentro do peito por causa de
tudo que a humanidade perdeu. Sabe que a vida
sempre foi assim e que hoje, mesmo depois de
sofrerem os efeitos da sua maldade, continuam
no mesmo caminho. Nada mudou. Só o tempo
passa inexoravelmente alheio a dor de todos.
--- Algum dia minha amiga,
- fala para a caixa sob a montanha de terra
- algum dia alguém mais puro, mais digno
vai poder receber o seu presente - conclui,
enquanto inicia silenciosamente a volta para
a sua toca, abaixo da terra.
Valdir R. Silva
20 - 12 – 2008
20:32 hs.
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